Tuesday, December 05, 2006

Os Hidrantes em Porto Alegre
















Os hidrantes em Porto Alegre


O hidrante, na sua personalíssima compleição, em seus atributos estéticos tão corriqueiros como fantásticos, sem sombra de dúvida convida para um olhar mais demorado. Algo de eminentemente civilizado paira sobre a paisagem a um tempo delicada e pontiaguda dos hidrantes. As cidades, insuperáveis artefatos humanos (?), são como o centro gravitacional ao redor do qual as admiráveis peças hídricas giram enquanto simulam uma total ausência de movimento. É como se a falsa imobilidade desses elegantes e grotescos objetos (a antítese é aqui proposital) servisse como uma das grandes imagens possíveis desta modernidade pra lá de alquebrada. Pois, o que são os hidrantes férreos e monocromáticos comparados aos estupefaciantes painéis publicitários high-tech da era do silício? Não há paralelismo possível. A ruptura é evidente e inescapável: só nos restaria a reivindicação expressa na nostalgia utópica (ou a utopia saudosa) do futuro que nunca houve, do presente que até hoje não se urdiu. É como se o inanimado dessas figuras largamente ignoradas exprimisse uma língua já há muito condenada ao desengano. Desprovida de “utilidade” e de valor no mundo do mercado e da razão instrumental elevada aos píncaros do absurdo, a apoteose dos hidrantes residiria justamente no seu suposto caráter inútil e desprezível. Pergunto: a espiral da história não contorna seu próprio eixo?

O hidrante, em contraposição ao que se tenha mencionado acima, não encontraria limites nele próprio – aquilo que há de mais pulsante na sua identidade não repousa egoisticamente em limites predeterminados aos próprios benefícios. O hidrante é a própria paisagem circundante. Sua verdade irradia e contamina o que houver ao redor (como se ele fosse o fundamento “invisível” da realidade, uma espécie de falso coadjuvante – eminência parda da arché urbana). Vide as recorrentes e quase imperceptíveis aparições do nosso protagonista nos clássicos fotogramas cinéticos e nas tiras em quadrinhos do imaginário pop vintecentista: o sol, a lua, mar, montanha, arbustos e correlatos estão para a natureza selvagem assim como o hidrante e seus parentes não mencionados estariam para a natureza da cultura.

Essas fotografias pretendem sugerir, a partir dos hidrantes porto-alegrenses, uma visão contemplativa – e despretensiosamente crítica, vá lá – acerca do homem e de seu meio. Ou ainda, dizendo de outra forma, expor as (involuntárias) incongruências sublimes e ridículas da pólis semiperiférica dos primeiros anos dos dois mil. Mundo, por exemplo, onde os carroceiros e velhinhos são respectivamente mais vivos e belos do que as fabulosas máquinas fálicas do amanhã sempre à venda. De alguma forma sutil e supostamente ignorada, nosso rosto está refletido nos espelhos dos hidrantes; estes se encontrariam nas curvas que levam ao centro do labirinto onde, quiçá, se desvela o mistério da esfinge – e de qualquer outro do qual se possa ansiar o segredo (ou quem sabe a sua manutenção...). Afinal, sob que disfarces os hidrantes viverão daqui em diante?


Luís Filipe
Florianópolis, 2 e 3 de junho de 2003 e 4 e 5 de dezembro de 2006

Fotografias: Antônio Augusto Bueno
Porto Alegre, 2 de dezembro de 2006



































































































































































3 Comments:

Blogger Marcus Fabiano said...

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1/06/2007 3:02 PM  
Blogger Marcus Fabiano said...

Hidrante é cachoeira de rio encanado. Na urbe em flamas, só quem pode desencantá-lo é a serpente de amianto dos bombeiros. Mas ele daí já ganha algo do risível das lingüiças: é sempre um tanto estranho meter uma criatura dentro de suas próprias tripas. Ao sabor das torneiras, no rio que corre invisível sob a carne negra do asfalto, os hidrantes são esfíncteres urbanos, algo que só de longe acena ao escoamento lerdo dos aquedutos romanos pelos arcos da Lapa. Os acidentes automobilísticos nos brindam com seu gozo: o rio que rebenta no chafariz das fontes inesperadas. Hidrantes, hidratantes: chuva que vem da terra, banho de mangueira. Ótimo texto. Abraços, MF

1/06/2007 3:05 PM  
Blogger Luís Filipe said...

Esta série de fotos sobre hidrantes é muito bem complementada nas fotos do mês de agosto de 2008 do www.fotolog.net/aabueno .

8/29/2008 2:22 PM  

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